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      Início Parágrafo Parágrafo #77 Um país debaixo do nariz de Pasolini

      Um país debaixo do nariz de Pasolini

      Pier Paolo Pasolini

      O Odor da Índia

      Saída de Emergência

             

      «A cada momento há um cheiro, uma cor, um sentido que é a Índia.» A frase de Pier Paolo Pasolini (1922-1975) inscrita na capa e, para que não restem dúvidas, também na contracapa do livro O Odor da Índia, pode bem induzir o leitor em erro. É certo que o primeiro título da nova colecção de viagens da editora Saída de Emergência, coordenada por António Araújo, não é O Perfume da Índia ou A Índia Cheira Tão Bem, mas nada nos prepara para os odores que emanam das páginas deste breve livro do escritor italiano feito cineasta.

      A Índia no alvor dos anos 1960 cheira mal que se farta. É esta, ao menos, uma das mais factuais e básicas conclusões a que qualquer leitor pode chegar depois de inalada a prosa de Pasolini. Este observador arguto e crítico finíssimo viajou pela primeira vez à Índia entre Dezembro de 1960 e Janeiro de 1961. Mas estava longe de ser uma viagem qualquer. Então próximo dos 40 anos, Pasolini era já um autor estabelecido em Itália – publicara dois romances, entre eles Uma Vida Violenta, e vários livros de poesia. Além disso, preparava a estreia do seu primeiro filme, Accattone, que aconteceu em Agosto de 1961. Porém, nesta viagem à Índia Pasolini não era a estrela da pequena companhia. Essa chamava-se Alberto Moravia, o grande autor de Os Indiferentes, vastamente traduzido e lido mundo fora. Os dois, por uma parte da viagem acompanhados de Elsa Morante, também escritora e esposa de Moravia, fizeram a viagem intercontinental com a justificativa de participarem de um congresso dedicado ao poeta indiano Rabindranath Tagore, em Bombaim, evento que Pasolini relata com o entusiasmo de um moribundo. Temos então dois homens, dois intelectuais de esquerda com dinheiro e com cultura, a viajar pelo grande planeta indiano, o primeiro de uma série de países subdesenvolvidos que Pasolini visitou naquela década. Ao mesmo tempo que os textos que compõem O Odor da Índia iam sendo publicados no jornal Il Giorno, o destacado Moravia escrevia para o Corriere della Sera sob o título Uma Ideia da Índia, prosas que haveriam também de ser coligidas em livro, publicado em português pela Tinta-da-China. A diferença de títulos das crónicas dos dois autores é também a dissemelhança entre os dois homens e os dois intelectuais. Numa entrevista posterior à viagem, Moravia não esteve com meia medidas. Reconheceu que o odor é algo muito presente na Índia mas também que «o olfacto é o mais animalesco dos nossos sentidos e isto confirma o neo-primitivismo de Pasolini». Este facto é recordado no prefácio assinado por António Araújo, bem como no ensaio «Pasolini and India: De- and Re-Construction of a Myth», de Silvia Mazzini, parte integrante do livro The Scandal of Self-Contradiction: Pasolini’s Multistable Subjectivities, Geographies, Traditions. Neste ensaio, Mazzini toca um aspecto importante relacionado com o posicionamento social e político de Pasolini: as constantes comparações que faz entre as realidades mais pobres e desfavorecidas que vai encontrando na Índia (os bairros degradados, os migrantes, a resignação dos desvalidos) e aquelas do seu país podiam justificar-se apenas pelo facto de autor estar a tecer um relato sobre uma nação distante nas páginas de um periódico italiano. Mazzini, porém, defende que Pasolini, durante anos um marxista convicto, «estava cada vez mais convencido de que o subproletariado em todo o mundo partilhava as mesmas características».

      Verdade seja dita que tais diferenças face a Moravia e contradições no modo como sente a realidade indiana ficam bem à vela nos textos de Pasolini – ele parece sempre consumido pela voragem do mundo, recusa perder pitada, a rua chama-o, os outros interpelam-no. Moravia, por seu turno, raras vezes arrisca uma caminhada, uma mudança direcção espontânea ou brusca, como que atravessa a Índia dentro da sua cápsula privada. Depois, Pasolini, aprecia a tolerância, a bondade e a simplicidade dos indianos, a «paz intensa e suja» (p.26) que ali encontra, a quase ausência de vulgaridade. Ao mesmo tempo, abomina quase tudo o que atravessa a paisagem indiana: a sujidade, a miséria, a indigência, as pessoas e os animais famintos, «montões negros e cinzentos de fome e desfalecimento» (p.28); os mendigos e os leprosos e outros doentes; a desorganização de toda e qualquer malha urbana; a sordidez da maior parte das vidas que o rodeiam, como se tivessem escapado a um terramoto que carece de registo.

      Esse terramoto pode muito bem ter sido o jugo do colonialismo e salto maior que a perna que o país finalmente livre continuava a dar quando Pasolini o visitou. A Índia tornara-se independente pouco mais de uma década antes, em 1947, e uma sociedade profundamente rural teve de encontrar as ferramentas para tentar industrializar-se e modernizar-se. É o estado calamitoso do país que desperta a ira do escriba contra Jawaharlal Nehru, então primeiro-ministro e líder adorado da Índia, sendo que o que de melhor se retira dessas passagens é mesmo o hilariante encontro entre Moravia e Nehru.

      Pasolini consegue ser tão brilhante quanto cruel em várias descrições que oferece ao longo de O Odor da Índia (sobre a religião, sobre o ideal erótico dos indianos, sobre um espectáculo de teatro a que assiste). Ou vejamos: «Cada indiano é um mendigo: mesmo quem não o faz por profissão, quando a ocasião se lhe apresenta, não renuncia a tentar estender a mão» (p. 72). O viajante está ao menos ciente ou convencido da sua condição privilegiada, material e intelectual, declarando a primeira e quase fazendo gala da segunda, quando diz de si e do seu parceiro Moravia estarem «com todos os instrumentos da inteligência prontos para usar, vorazes, agradáveis e cruéis» (p.106).

      Do bailado fúnebre (p.80) que é a vida em Calcutá, a lugares como Benares, onde encontrou alguma paz, tudo afectou Pasolini nesta viagem «com uma violência inaudita», tudo lhe «reverberava na córnea, imprimindo-se com tal violência que a arranhava» (p.93). Tanto assim foi que Pasolini voltou ao país em 1967 para rodar Notas para um filme sobre a Índia, documentário de pouco mais de meia hora. Antonioni, outro dos gigantes do cinema e da intelectualidade italiana, faria caminho semelhante anos depois, em direcção ao País do Meio, para assinar o monumental Chung Kuo: China, de 1972.

      É pouco sexy para agências de viagens (e editoras, vá), mas a frase que provavelmente melhor resume o olhar que Pasolini lança sobre a Índia nesta obra será esta sobre Deli: uma cidade em que «há sempre uma figueira-de-bengala desamparada, com as suas raízes ao vento, um cão, um miserável: a testemunhar a invencibilidade de uma miséria»(p.105).