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      Início Reportagem Arte e Guerra, Diferenças Irreconciliáveis

      Arte e Guerra, Diferenças Irreconciliáveis

      Artistas russos e ucranianos com ligações a Macau travam-se de razões sobre as origens do conflito e as responsabilidades de cada uma das partes. Impossível não se acharem de costas voltadas.

       

      A Velha-Nova Rússia entre Dois Mundos. Com este título, o antigo Leal Senado organizou uma exposição que trouxe a Macau, em Janeiro de 1993, obras de seis artistas originários de Vladivostoque e de outras regiões do Extremo Oriente russo. A União Soviética tinha deixado de existir muito pouco tempo antes, em Dezembro de 1991, e era grande o interesse no exterior por uma nova geração de artistas russos mais influenciada pelo experimentalismo da arte contemporânea do que pelo velho cânone soviético do realismo social. Galeristas, críticos de arte e jornalistas chamavam-lhes os Filhos da Perestroika, em alusão ao movimento de reformas políticas lançado por Mikhail Gorbachev, que acabaria por conduzir à dissolução da União Soviética. As figuras mais representativas desta nova geração foram convidadas a mostrar os seus trabalhos em todo o mundo, em centenas de exposições realizadas ao longo da década de 90.

      Vladimir Ganin, então com 23 anos de idade, foi um dos artistas representados na mostra pioneira promovida pelo Leal Senado. “Não me desloquei na altura a Macau, mas acabei por visitar a cidade em 2002 e depois disso voltei mais algumas vezes, para estar com amigos”, conta ao PONTO FINAL o artista natural de Vladivostoque, hoje a viver na China.

      Ganin é professor de arte na Universidade Politécnica de Hunan desde 2001. A actividade docente, a par da sua produção artística, valeu-lhe a condecoração com a Ordem da Amizade pelo governo chinês, em 2004. Um dos momentos altos da sua carreira foi a exposição individual realizada no Museu de Arte Moderna Russa da cidade de Jérsia, nos Estados Unidos, em 1997. Os seus trabalhos integram agora o espólio de museus de prestígio e colecções particulares como as de Mikhail Gorbachev e do Rei Norodom Sihanouk do Camboja, já falecido, ou do ex-presidente da Federação Russa Dmitry Medvedev, actualmente vice-presidente do Conselho de Segurança Nacional de Moscovo. Em 2015, foi convidado do Presidente Xi Jingping nas celebrações, em Pequim, do 70º aniversário da vitória na Grande Guerra Patriótica sobre a Alemanha Nazi.

      Konstantin Bessmertny foi outro dos artistas russos cujos trabalhos foram pela primeira vez exibidos em Macau em 1993. “Estava a fazer os meus últimos exames no Instituto de Arte (de Vladivostoque) quando recebi um convite da Galeria Rotonda para participar numa exposição de artistas russos em Macau e Hong Kong”, recorda o artista desde então radicado no território. “Eu na altura não tinha planos muito firmes para o futuro e tinha alguma experiência na montagem de exposições. Era o único do grupo que falava inglês e talvez por isso tenha sido visto como o melhor candidato para vir a Macau ajudar a montar o projecto (no antigo Leal Senado)”. Essa circunstância, e os convites profissionais que se seguiram, acabaram por levá-lo a estabelecer-se em Macau já lá vão 30 anos.

      Amigos desde o tempo de estudantes em Vladivostoque, Ganin e Bessemertny passaram a visitar-se regularmente a partir do momento em que ambos ficaram a viver na China, um em Hunan, o outro em Macau. Mas essa ligação de amizade acabou agora, aparentemente de forma irreversível.

       

      Ao lado de Putin

      “Deixámos de ser amigos depois de todos estes anos de contacto, por termos opiniões radicalmente diferentes sobre a guerra na Ucrânia”, explica Vladimir Ganin. “A imprensa ocidental divulga sempre informação muito negativa sobre a Rússia e sobre Putin – e eu recuso-me a fazer parte disso. Sou um patriota e acho que Putin tem toda a razão do seu lado”.

      Apesar de se expressar em inglês com alguma dificuldade, Ganin manifesta a sua opinião sobre o conflito de forma bem clara: “Durante oito anos, a Ucrânia bombardeou a população de Donbas e ninguém se preocupou com isso. A guerra que hoje existe é o resultado dos actos horríveis praticados pelos ucranianos. Sei que a guerra em si mesmo é má, mas era preciso a Rússia dar luta aos nazis na Ucrânia e defender as suas fronteiras”.

      A responsabilidade, garante, cabe toda à NATO e ao governo de Kiev, que terá repetidamente violado os acordos de Minsk sobre a região de maioria étnica russa do Donbas, no sudeste da Ucrânia, onde se vivia uma situação de guerra não declarada desde 2014. Em total sintonia com o discurso oficial do Kremlin, Ganin fala num “genocídio contra a população de origem russa” que terá causado pelo menos 14 mil mortos, entre as quais mais de uma centena de crianças. E acusa os Estados Unidos e os restantes países da NATO de armarem a Ucrânia até aos dentes, para lançarem uma agressão contra o povo russo “à custa do sangue dos ucranianos”.

      “O exército russo teve todo o cuidado para não bombardear alvos civis, poupando dessa forma vidas inocentes, mas os nazis ucranianos, como se pode ver em muitos vídeos, usaram civis para se protegerem e torturaram e executaram prisioneiros russos”, afirma. “A actual operação militar destina-se a destruir as armas que estão a matar inocentes e a evitar uma guerra de maiores proporções”.

      Ganin acusa ainda o Ocidente de dualidade de critérios e hipocrisia moral por, segundo diz, ser participante ou cúmplice em intervenções militares como as ocorridas na Síria, no Iémen ou onde quer que haja petróleo. “Choca-me o sofrimento de milhares de civis, mas temos de ganhar esta guerra – e vamos ganhá-la”, conclui.

      Quanto ao impacto que a guerra possa vir a ter no seu trabalho, desvaloriza-o: “Se a arte está ao serviço do activismo social ou político, isso depende do artista. Pessoalmente, não gosto de fazer pintura ou caricaturas sobre a guerra. Ao longo da sua vida, (o artista italiano da Renascença) Miguel Ângelo assistiu a 6 ou 8 guerras na sua pátria, e não foi por isso que se pôs a caricaturá-la, como faz por exemplo o Konstantin (Bessmertny). Acho isso estúpido”. E numa última alusão ao seu amigo de outros tempos, deixa escapar uma insinuação: “Parece que, por ser russo, está a ter agora algumas dificuldades em expor fora de Macau. Talvez seja por isso que odeie a Rússia e o Presidente Putin”.

       

      À espera do fim do pesadelo

      Konstantin Bessmertny confirma o corte de relações com Ganin, mas ignora a acusação, absurda. É crítico de Putin há muitos anos e a guerra só veio reforçar a ideia de que está na altura do povo russo se ver livre dele: “Sigo de perto a situação na Rússia desde sempre e, de alguma forma, estava preparado para tudo que pudesse partir deste governo. Ainda assim, foi para mim um grande choque quando a guerra começou. Todas as manhãs, a primeira coisa que faço é ver as notícias da Ucrânia, na esperança de que este pesadelo acabe em breve”.

      Tal como muitos outros cidadãos russos, Konstantin está ligado à Ucrânia por fortes raízes familiares e por uma longa história de acontecimentos trágicos (veja-se, a propósito, o artigo de opinião que assina nestas páginas). Alguns anos mesmo antes do início da guerra, o artista preparava já uma grande exposição centrada na denúncia do regime autocrata russo. “Intrigava-me que tudo pudesse correr tão mal na Rússia de Putin”, justifica. “Estranhamente, algumas das obras destinadas a essa mostra são como que premonitórias de alguns dos eventos agora em curso na Ucrânia. Continuo a trabalhar nessa exposição, mas espero agora vir a realizá-la já depois do fim de Putin e do colapso do seu regime”.

      A resposta a Ganin, circunscreve-a ao plano do posicionamento da arte perante a guerra e a injustiça: “O artista é mais um filósofo do que um repórter, embora seja também um espelho da realidade. (…) Há sempre um discurso de justificação moral da resposta do artista, ou da falta dela, ao sofrimento humano em tempos de crise ou de catástrofe. (O artista francês Henri) Matisse pintava flores, fazia colagens coloridas e desenhava modelos nus enquanto cidades eram bombardeadas. Já Picasso enfurecia-se em ‘Guernica’ numa proclamação artística de resposta às atrocidades militares”.

      A história aparenta deixar aos artistas diferentes opções, admite Bessmertny. Mas não é isso que defende: “O artista que não manifeste posição quando pessoas são assassinadas à sua volta, estar-se-á a colocar ao lado do Mal, como se estivesse ao serviço do próprio Diabo”.

       

      Na China, a apoiar a causa ucraniana

      Ao contrário de Ganin e Bessmertny, que mantêm perante a guerra posturas diametralmente opostas, Yaroslav Khanko e Sergiy Pudich, dois artistas ucranianos de Odessa, não hesitam na condenação veemente dos ataques russos. Sem que isso surpreenda.

      Pudich é o que expressa maior indignação: “Quase não consigo descrever os meus sentimentos nos últimos dois meses. Parece que deixei de ter capacidade de sentir, a não ser raiva e o desejo de que os soldados russos e Putin morram. Ainda há dias, um edifício de 9 andares foi atingido por um míssil na minha cidade e um bebé de 3 meses foi uma das vítimas mortais. Mas, claro, as notícias do lado russo dizem que só são atingidos objectivos militares. Não sei como é que em 2022 ainda se acredita na propaganda da televisão russa, quando se pode aceder em poucos minutos à informação disponível na internet”. Como país e como nação, acrescenta, “a Rússia está a mostrar ao mundo a sua verdadeira face: são mentirosos, assassinos, criminosos de guerra, maníacos e violadores. É inacreditável que isto esteja a acontecer em pleno séc. XXI por causa dos delírios tresloucados de um homem. Oitenta anos depois, Hitler voltou.”

      Escritor, realizador e produtor de cinema, autor de vários documentários e filmes de ficção premiados, Pudich participou em 2018 no Festival Internacional de Curtas de Macau, evento organizado pelo Centro de Indústrias Criativas. O filme A Mulher Caranguejo (Crabgirl) foi um dos finalistas do festival na categoria de curtas-metragens de ficção.

      O cineasta estava a viver há três anos em Pequim, com a mulher e os filhos, quando recebeu as notícias do início da guerra. Tal como muitos outros ucranianos, receou que dois ou três dias bastassem às tropas russas para tomar Kiev e as outras grandes cidades do país. A sua primeira preocupação foi garantir que a mãe, residente de Odessa, pudesse viajar em segurança para Itália. Uma vez resolvido esse problema, empenhou-se em acções de angariação de fundos junto da comunidade de expatriados da capital chinesa, recolhendo em poucos dias mais de 10 mil dólares em assistência humanitária. Paralelamente, produziu filmes de sensibilização política também de apoio à causa ucraniana. Pudich diz não ter dúvidas de que muitos chineses possam estar do lado da Ucrânia na actual crise, mas admite que a maioria vê a guerra como um conflito que opõe a Rússia aos Estados Unidos, onde os ucranianos são vítimas de ambos.

      Como tinha planeado antes da guerra começar, mudou-se há dias com a família para Banguecoque, na Tailândia, onde vai agora tentar continuar a apoiar os esforços de resistência dos ucranianos contra a invasão russa. Uma das primeiras iniciativas que tem em mente é a projecção em público do documentário Comboio: Kiev-Guerra, que produziu em 2019, onde se conta a história dos passageiros que viajavam da capital ucraniana até à zona de guerra do Donbas, através dos seus dramas pessoais, dos seus segredos e medos – mas também das suas esperanças num futuro de paz.

      “A minha maior preocupação neste momento é que a guerra acabe depressa e com o menor número de baixas possível – de ucranianos, sobretudo”, afirma, antes de revelar o projecto profissional que gostaria de realizar o mais cedo possível: “Com base numa história real, quero muito fazer um filme sobre a nossa vitória!”

       

      Em Odessa, debaixo de bombardeamentos

      Yaroslav Khanko, artista plástico ucraniano que durante dois anos trabalhou como cartoonista no hotel Parisian, em Macau, mantém-se em Odessa desde que a guerra começou. A cidade portuária do Mar Negro não é das mais afectadas pelos ataques russos, mas nas últimas semanas têm-se intensificado os bombardeamentos de mísseis sobre a cidade. A vida passou a ser um permanente sobressalto: “A situação aqui em Odessa está relativamente calma, mas a guerra não está muito distante e a cidade é muitas vezes atingida por rockets. Há dias, destruíram por inteiro um grande centro comercial. O som das explosões é horrível, é extremamente perturbador.”

      Observa, apesar disso, que a vida na cidade continua a manter uma aparência de normalidade: “As lojas e os restaurantes estão abertos, as esplanadas estão cheias de gente, os carros continuam a circular por todo o lado – e se são em menor número, é por haver escassez de gasolina. Enfim, é um ambiente um pouco surreal”.

      A guerra não tem sido tema de inspiração para o seu trabalho artístico, com uma única excepção até ao momento: uma aguarela que pintou nos primeiros dias da guerra e que retrata uma criança horrorizada num cenário de destruição. “A Ucrânia é hoje um inferno sangrento e isso rouba-me a disposição para pintar”, justifica-se. “Quando os canhões falam, as musas ficam em silêncio”.

       

       

      PONTO FINAL