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      Início Entrevista “A racionalidade do prosseguimento da política de tolerância zero é muito...
      António Félix Pontes

      “A racionalidade do prosseguimento da política de tolerância zero [à Covid-19] é muito questionável”

      António Félix Pontes foi administrador da Autoridade Monetária de Macau e presidente do Instituto de Formação Financeira. Hoje, para além de economista, representa Macau na Greater Bay Area Impact Forum Foundation. Em entrevista ao PONTO FINAL, critica a insistência na política de zero casos de Covid-19, dizendo que terá “consequências devastadoras” na economia. No entanto, mostra-se optimista de que Macau acabará por rever essa política ainda este ano. A nova lei do jogo também é alvo de críticas por parte de Félix Pontes, que diz que “matar a ‘galinha dos ovos de ouro’ é, para mim, insensato e revela a ausência de uma estratégia realista para o desenvolvimento económico de Macau”. Por fim, o economista nota que os empresários de Macau têm um “evidente desinteresse” de investirem em Hengqin.

      Fotografia de Gonçalo Lobo Pinheiro

      Na opinião de António Félix Pontes, a insistência na política de tolerância zero à Covid-19 está a ter “consequências devastadoras” na economia de Macau. “A racionalidade do prosseguimento da política de tolerância zero é muito questionável”, apontou o economista, em entrevista ao PONTO FINAL, apontando para os encerramentos das pequenas e médias empresas e para a crescente taxa de desemprego. Porém, o antigo administrador da Autoridade Monetária de Macau e ex-presidente do Instituto de Formação Financeira diz que Macau acabará por rever essa política no decurso deste ano. A crise vai obrigar a indústria do jogo a redimensionar-se, destacou, criticando também a nova lei do jogo: “Matar a ‘galinha dos ovos de ouro’ é, para mim, insensato e revela a ausência de uma estratégia realista para o desenvolvimento económico de Macau”. O representante de Macau na Greater Bay Area Impact Forum Foundation diz notar um “evidente desinteresse” na aposta em Hengqin por parte dos empresários locais. “Há muito que fazer para que Macau concretize o que lhe foi estabelecido pelo Governo Central e, dessa forma, poder retirar os benefícios da sua integração na Grande Baía”, referiu.

       

      A política de zero casos parece persistir. A economia de Macau conseguirá aguentar muito mais?

      Na minha opinião, e em termos muito gerais, a política de tolerância zero pode justificar-se quando surge uma epidemia ou pandemia originada por um novo vírus, em relação ao qual se tem pouco ou nenhum conhecimento. No entanto, a sua aplicação não deve prolongar-se por um período muito longo por causa dos seus efeitos perversos, não só na economia, mas também na saúde mental dos cidadãos e na própria ordem social, sendo até possível emergirem convulsões na sociedade civil. A continuação dessa política por um, dois ou mais anos tem, de facto, consequências devastadoras em qualquer economia do mundo, e Macau não é excepção. Felizmente, o Governo de Macau tem elevadas reservas financeiras – para cuja constituição as receitas do jogo tiveram papel determinante – podendo, desta forma, continuar a subsidiar as pessoas e as empresas. Mas essa opção política não pode, nem deve, continuar eternamente, sob pena de as reservas em apreço sofrerem uma grande erosão. Com o desenvolvimento das vacinas e/ou de medicamentos específicos para o tratamento da Covid-19, considero que a racionalidade do prosseguimento da política de tolerância zero é muito questionável, até porque temos os outros vírus que nunca foram erradicados e que por cá continuam, como é o caso da gripe sazonal, entre inúmeros exemplos. Seguindo o que já está a ser feito noutros países, Macau acabará, na minha perspectiva, por rever essa política, ainda no decurso do presente ano, tendo em vista a criação das condições mínimas para a recuperação económica. Note-se que o aparecimento da variante Omicron não deu aso a uma taxa de mortalidade mais alta, atendendo que, no momento actual, grande parte das pessoas já está vacinada. Aliás, muitos especialistas de renome nesta matéria consideram que já entrámos numa fase endémica em grandes zonas do mundo.

       

      Que efeitos poderá ter esta política a longo prazo, ao nível das pequenas e médias empresas?

      Como referi, acho errada a persistência da política de tolerância zero para a Covid-19 por períodos demasiado longos. Caso contrário, as pequenas e médias empresas não terão capacidade para manter o seu funcionamento pelo que terão de encerrar. E, mesmo nas grandes empresas, os efeitos serão devastadores. Os Governos também verão as suas receitas advindas dos impostos caírem de forma dramática.

       

      A taxa de desemprego deverá aumentar no futuro?

      Sem dúvida. Em Março do ano corrente, a taxa de desemprego atingiu 3,3%, quando, no início da pandemia, o seu valor quedava-se por 1,7%. Por conseguinte, no que respeita à evolução dessa taxa nesse período, a sua evolução foi de +94,1%. E esse aumento só não foi muito superior devido ao efeito amortecedor decorrente da subsidiação governamental às pequenas e médias empresas que tem permitido a estas sobreviverem, mas em condições muito difíceis.

       

      Qual o impacto no sector bancário e financeiro?

      A forte contração da actividade económica de Macau nos dois últimos anos conduzirá, inevitavelmente, a impactos desfavoráveis no sector financeiro devido aos efeitos em cadeia resultantes do encerramento de muitas unidades produtivas, ou da diminuição substancial da sua actividade. As empresas locais irão entrar, se é que a grande parte já não entrou, em situação de incumprimento dos empréstimos contraídos, obrigando os bancos a aumentarem as provisões para os créditos malparados, diminuindo, consequentemente, a sua rentabilidade. Por outro lado, a volatilidade dos mercados financeiros, agora ainda maior devido à guerra na Ucrânia desencadeada pela Rússia, vai ter um grande impacto negativo no sistema financeiro global, cujos custos directos e indirectos ainda é muito cedo para se ter uma ideia.

      Prevê uma reestruturação da indústria do jogo após esta crise?

      As empresas concessionárias dos casinos estão a defrontar-se com uma série de factores adversos, os quais, numa linguagem simpática, se denominam por ‘desafios’: os efeitos da pandemia e das medidas de prevenção contra a sua propagação, a nova lei do jogo e a decisão das autoridades chinesas quanto à autorização para as pessoas viajarem para o exterior e à saída de fundos. Perante este panorama, não tenho dúvidas de que a indústria do jogo será obrigada a redimensionar-se.

       

      A nova lei do jogo poderá desestabilizar a indústria?

      Bem, ajudar a indústria do jogo, pelo menos, não vem. A forma infeliz como foi feita a sua apresentação, que ocasionou uma queda abrupta e desnecessária da cotação das acções das concessionárias, e o conteúdo do projecto inicial da futura lei indiciam que existe uma determinação político-administrativa em reduzir o peso do jogo na economia local, eventualmente em defesa da almejada, mas nunca conseguida, diversificação económica de Macau. Concordo que se devem corrigir algumas situações cinzentas na lei do jogo ainda vigente e proceder a melhorias, mas, no essencial, não se deveriam penalizar as concessionárias, cujo contributo indiscutível para a criação das reservas financeiras do Governo, desde o início deste século, tem permitido a este fazer um brilharete notável na concessão dos subsídios aos residentes e empresas de Macau. Matar a ‘galinha dos ovos de ouro’ é, para mim, insensato e revela a ausência de uma estratégia realista para o desenvolvimento económico de Macau. Creio que é possível promover a emergência ou o desenvolvimento de outros sectores económicos, o que leva o seu tempo, mas sem nunca desmantelar a indústria do jogo, que é o nosso principal pilar na economia de Macau e nas receitas governamentais .

       

      O Governo pretende diversificar a economia de Macau. Parece-lhe que é possível a médio prazo?

      Não, a curto e médio prazo essa diversificação vai continuar a ser uma miragem. Para mim, o jogo e o turismo vão continuar a ser os sectores mais relevantes da economia de Macau nos próximos 10 a 15 anos, mesmo que haja alterações na composição do tecido económico. O sector primário é inexistente em Macau, o sector secundário tem uma dimensão cada vez menor e só no sector terciário será possível termos algumas novidades no futuro, mas devemos sempre contar com uma série de anos de gestação. Pretender introduzir essas modificações a curto prazo e, em simultâneo, afectar significativamente a indústria do jogo, representa uma certa irracionalidade política, com a consequente estratégia de desenvolvimento económico ficar destinada ao fracasso. É abismal a diferença entre os fundos que o Governo arrecada do jogo (34% incidente sobre as receitas brutas das concessionárias dos casinos) com o que recebe de quaisquer outras fontes (cujas taxas de imposto recaem sobre as receitas líquidas). Por exemplo, comparando essa taxa de 34% com o que é cobrado (0,0037%/ano) para a custódia de obrigações de valor de 15 mil milhões de patacas, constata-se uma diferença para menos de quase 9.200 vezes, equivalente a 5,8 mil milhões de patacas.

       

      Hengqin poderá ser uma ajuda para a diversificação da economia? É um projecto realista?

      Gostaria que pudesse ser, mas, por um lado, não tem havido grande apetite dos empresários de Macau para investirem em Hengqin e, por outro, a promoção dessa zona de cooperação conjunta tem deixado muito a desejar, ou então, estamos perante uma opacidade injustificável em termos de transparência na divulgação de informações. No plano de desenvolvimento de Hengqin, há manifestação de muitas e boas intenções – embora numa linguagem muito densa – mas, na prática e até ao momento, pouco ou nada se vê. Quando se anunciou esse plano registou-se um grande entusiasmo, mas, depressa, o mesmo esvaziou-se. Assim, penso que seria da maior utilidade auscultar os empresários locais no sentido de os mesmos se pronunciarem sobre os motivos do seu evidente desinteresse por Hengqin: Razões fiscais? Aplicação da legislação do Continente? Demora habitual de alguns departamentos públicos de Macau em concederem autorização? Ou essa inércia é também culpa das autoridades de Hengqin? Falta de motivação dos residentes de Macau em trabalharem em Hengqin? Receio de competir com as empresas do Continente e com os seus trabalhadores? Ausência de apoios governamentais? Trata-se de uma iniciativa que, reconheço, é muito interessante mas, para a mesma ser realista, precisará de, pelo menos, cinco a dez anos, para a sua implementação. E creio que estou a ser optimista. Finalmente, há ainda um aspecto que ninguém veio esclarecer publicamente como a produção em Hengqin – zona geográfica que não faz parte da RAEM – vai contribuir para o produto interno bruto de Macau, tendo em atenção os critérios internacionais estabelecidos sobre as contas nacionais para a determinação dos principais indicadores macroeconómicos de um país ou território.

       

      O projecto de Hengqin tem como foco a indústria da ‘big health’, alta tecnologia, convenções e exposições e medicina tradicional chinesa e finanças modernas. São boas áreas para apostar?

      Sim, são áreas excelentes e modernas, mas, como já referi, vai demorar a realização desses projectos. Desde há muito que sou apologista do turismo de saúde, mesmo em Macau, aliás, acho que esta iniciativa dever-se-ia expandir para toda a zona da Grande Baía. Quanto às convenções e exposições e à medicina tradicional, devem ser os primeiros a ter concretização. Sobre a alta tecnologia, incluindo o ‘blockchain’, as criptomoedas e a inteligência artificial, acho que é uma aposta correcta, sugerindo apenas que seja preparado e divulgado um plano para a sua implementação e a respectiva calendarização. Já as chamadas finanças modernas serão o último projecto a desenvolver, não só em Macau como em Hengqin. Na realidade, esse projecto requer a introdução de novas leis e mudanças na legislação vigente – mas o nosso processo legislativo é muito vagaroso – bem como a contratação sem complexos de ‘experts’ do exterior – cuja autorização é, injustificadamente, difícil e pouco célere, ao contrário do que ocorre noutras jurisdições bem perto de Macau e, assim, continuamos a perder competitividade em cada dia que passa – a formação especializada na área financeira de estudantes universitários locais e do Continente – em relação a estes últimos, deparamo-nos com mentalidades retrógradas dos decisores político-administrativos de Macau que recusam criar condições para esses estudantes poderem trabalhar em Macau, quando terminam os seus estudos nas universidades locais e até recusam aos mesmos de fazerem estágios nos bancos e seguradoras, mesmo quando os seus planos de estudos incluem esse módulo (estágio).

       

      Representa Macau na “Greater Bay Area Impact Forum Foundation”. Que frutos poderá obter Macau colher desta integração na Grande Baía? E, na sua opinião, a integração de Macau na Grande Baía está a decorrer da melhor forma?

      Recorde-se que o projecto da Área da Grande Baía consiste numa iniciativa regional de relevo da República Popular da China congregando nove municípios da província de Cantão e as duas regiões administrativas especiais de Hong Kong e Macau, tendo sido conferido à RAEM o estatuto de uma das quatro cidades essenciais ou motores do desenvolvimento da Grande Baía (as restantes são Hong Kong, Shenzhen e Cantão). De acordo com o plano da Grande Baía, Macau deve actuar no sentido de, por um lado, transformar-se num centro mundial de turismo e lazer e, por outro, numa plataforma de serviços na cooperação China-Países de Língua Portuguesa. Ora, para a concretização desses desideratos, temos de voltar a ter turistas, o que, no momento, não se verifica, desconhecendo-se quando as portas de Macau se abrirão. E criar condições para Macau tomar medidas efectivas para, por si, desenvolver o relacionamento económico-financeiro entre Macau e os Países de Língua Portuguesa, o que, no caso dos Países Africanos de Língua Portuguesa e Timor-Leste, praticamente nada tem sido feito. Enquanto não se tiver uma seguradora de crédito pública que garanta os riscos políticos e a concessão de linhas de crédito por parte de Macau para a exportação e o investimento para esses países, tudo não passará de intenções meramente platónicas. Assim sendo, considero que há muito que fazer para que Macau concretize o que lhe foi estabelecido pelo Governo Central e, dessa forma, poder retirar os benefícios da sua integração na Grande Baía.