Foi há um mês que a Rússia precipitou as suas tropas para a Ucrânia. Um mês que já mudou o mundo. Michael Share, especialista em História da Rússia, assinala que a invasão da Ucrânia teve o condão de unir o Ocidente e enfraquecer as relações do Kremlin com a China. Frederico Rato considera a invasão da Ucrânia um “retrocesso civilizacional” para o mundo. “O mundo regrediu”, concorda José Luís Sales Marques.
Há um mês tinha início a invasão russa à Ucrânia. Depois de meses de tensão na fronteira, a Rússia ordenou aos militares que avançassem para território ucraniano. Putin diz que esta é uma “operação militar especial”, que tem como objectivo proteger os russos que vivem no Leste da Ucrânia das “humilhações e genocídios” alegadamente perpetrados por Kiev. O Presidente russo alega que a operação visa também “desmilitarizar e desnazificar” o país.
“O Presidente Putin esperava que a guerra terminasse em uma semana, que em dois dias estaria em Kiev, que formaria um governo satélite e que conquistaria ganhos territoriais, sendo que a Ucrânia estaria alinhada com a Rússia. Em vez disso, temos tido exactamente o oposto”, aponta Michael Share, docente da Universidade de Macau e especialista em História da Rússia, ao PONTO FINAL.
Ao invés daquilo que pretenderia Vladimir Putin, a guerra na Ucrânia “uniu o Ocidente a um nível que não se via desde a Guerra Fria, tornou a NATO muito mais forte e mais eficaz, e enfraqueceu a aliança entre a Rússia e a China”. “A todos os respeitos, a guerra tem sido contraproducente. Isolou a Rússia a um ponto que eu nunca tinha visto na vida”, afirma Share.
O académico nota que a população russa está totalmente dividida no que toca à guerra. Segundo Michael Share, na Rússia, os mais jovens estão contra a guerra, enquanto os mais velhos estão a favor. Quem mora em meios urbanos está contra a guerra, quem mora em meios rurais está contra. Quem tem mais formação está contra a guerra, quem tem menos está a favor.
“Não sabemos o que vai acontecer no futuro. O único que sabe será Putin, e mesmo assim não sei se ele saberá”, assinala o professor, apontando alguns cenários possíveis: Putin apostar nas negociações de paz com a Ucrânia, “coisa que ainda não fez”; escalar a guerra, “bombardear mais, atingindo mais civis, com o objectivo de levar mais pessoas a sair do país, provocando instabilidade na zona”; recorrer a armas nucleares; ou anexar a zona do Donbass, “declarar vitória e abandonar”. A reacção da comunidade internacional está em suspenso, à espera de Moscovo.
O PERIGO DE UM CONFLITO À ESCALA GLOBAL
Na opinião de Frederico Rato, esta guerra vai “condicionar muito o futuro”. Não apenas no que toca à segurança e paz mundial, mas também no que toca aos efeitos económicos, sociais e humanitários.
Para o advogado, “esta guerra é um retrocesso civilizacional em pleno segundo quinto do século XXI”. “Não tem qualquer razão de existir”, afirma, assinalando que “é impensável que depois das duas dolorosas experiências no século XX – a primeira e segunda grandes guerras – não se tenha aprendido a lição de que temos de ter uma cultura de paz sob pena de a humanidade desaparecer”.
O protagonista deste “retrocesso civilizacional” é Vladimir Putin. “Uma sequela do pior que teve o regime soviético. Ele saiu do aparelho soviético mas o império e o expansionismo não saíram dele”, descreve. Este ataque à Ucrânia é “o espezinhamento da carta das Nações Unidas, ainda por cima por parte de um membro permanente do Conselho de Segurança, que é um órgão de paz”, aponta Frederico Rato.
Será, então, possível que o conflito venha a espoletar uma guerra mundial? “Diria que este conflito tem potencialidades para ser uma escalada. Entretanto estamos a ver que além do uso das armas convencionais, podemos evoluir para as armas químicas, para o ataque com armas biológicas ou para um ataque com armas nucleares”, responde o causídico de Macau, antevendo: “Se as coisas não forem contidas e não se voltar para a mesa das negociações e os conflitos não forem resolvidos através da diplomacia e através dos órgãos supranacionais, podemos de facto vir a desencadear uma situação que eventualmente pode culminar numa terceira guerra mundial”.
No entender de Frederico Rato, Putin avançou para a Ucrânia porque a Europa “está desguarnecida”. “A Europa não tem um exército próprio, a Europa não tem uma política de segurança e de paz própria, não está preparada para a guerra, vive com as costas quentes da NATO, que é um instrumento da política externa e de segurança dos EUA”.
O orgulho russo também está em jogo. Putin e os seus generais “não podem perder a face”, depois de um mês de guerra sem que os militares russos consigam tomar Kiev. “As coisas não se estão a passar como eles tinham desenhado. A resistência do povo ucraniano surpreendeu um pouco os russos e isso pode conduzir a uma mais rápida e melhor negociação”, diz.
Tal como Michael Share, Rato destaca a morosidade da operação russa devido à resistência ucraniana: “Pensava-se que o assunto estava resolvido ao fim de uma semana e este 30.º dia só se deve à resistência dos ucranianos. Ainda que por exaustão possa haver uma rendição”. Depois da eventual rendição, o que se seguirá é, considera Frederico Rato, a imposição de um “governo fantoche” em Kiev patrocinado pelo Kremlin. Isso poderá levar a uma situação de guerrilha com os resistentes ucranianos, “que se pode arrastar por dezenas de anos”, antevê.
“O MUNDO REGREDIU”
“De facto, a guerra na Ucrânia está a mudar o mundo”, considera também José Luís Sales Marques, dando os exemplos da “calamidade humanitária” que está a acontecer, a escalada dos preços dos combustíveis e a escassez dos bens alimentares. “O mundo neste momento já está a passar por uma pressão enorme”, afirma.
Também na Rússia os efeitos da guerra se vão sentir. Desde logo “porque efectivamente há já muitas famílias russas que estão a chorar a morte dos seus filhos na frente da batalha”. Por outro lado, “as sanções que são impostas pelos EUA e UE e outros países do bloco Ocidental, de certeza que não vão só afectar os oligarcas e dirigentes políticos da Rússia, mas também cidadãos e pessoas comuns que vivem na Rússia, que vão sentir o efeito”.
“Há uma destruição imensa. O mundo regrediu”, afirma o economista de Macau, lembrando que há preocupações mundiais que agora parecem ter ficado em ‘stand by’, como a defesa do ambiente e a sustentabilidade.
Sales Marques lembra que “a Europa é um projecto para a paz. A UE foi construída das cinzas da segunda guerra para fundamentalmente obter uma situação estrutural em que a guerra fosse impossível. Esse é o fundamento da UE”. Esta guerra mostra que “esses valores estão hoje em dia muito enevoados”, considera.
Assim, é necessário os responsáveis trabalharem para conseguirem um cessar-fogo, diz. “Eu não vejo Putin a baixar as armas e também não vejo a Ucrânia a render-se. Essa é a situação real. A principal questão é tentar o cessar-fogo. O que há a fazer é não levar Putin a uma situação em que a escalada seja inevitável”, recomenda o economista, concluindo: “É necessário tentar encontrar uma solução que pode infelizmente levar a uma situação de cessar-fogo e não a uma situação a curto prazo situação de paz alcançada. Isso vai levar tempo”.
Trinta dias depois, dimensão da destruição ainda está por descobrir
Hoje o conflito na Ucrânia entra no seu 30.º dia. Após meses de tensão na fronteira comum, a Rússia invadiu a Ucrânia na madrugada de 24 de Fevereiro. Desde então, sucederam-se bombardeamentos, mas também solidariedade e reforço de alianças no Ocidente, tanto na União Europeia (UE), como na Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO). Não se sabe ao certo qual é a situação actual na Ucrânia. As duas partes acusam-se mutuamente de atrocidades, reclamam vitórias e conquistas, e anunciam números de mortos e feridos, mas falta uma verificação independente. As Nações Unidas divulgam diariamente um balanço das vítimas civis que consegue confirmar. A contagem vai num milhar de mortos e quase 2.000 feridos, incluindo muitas crianças, mas a ONU alerta todos os dias que os números reais serão muito superiores. A cidade portuária de Mariupol, no Mar de Azov, com 430.000 habitantes, tem emergido como um dos locais onde a morte e a destruição poderão ser mais trágicas. As autoridades locais falam em cerca de 3.000 mortos e há imagens de corpos a serem enterrados em valas comuns. Também dizem que 80% dos edifícios foram destruídos ou danificados e que a cidade está sem água, electricidade e mantimentos. Agências humanitárias receiam uma tragédia humana de grande dimensão. A ONU diz que a guerra levou mais de 10 milhões de pessoas a fugir de casa e, desses, mais de 3,5 milhões de pessoas procuraram refúgio nos países vizinhos, com a Polónia a receber mais de metade, e muitos continuaram para outras paragens. A ONU diz que a Europa está a viver a pior crise do género desde a Segunda Guerra Mundial (1939-45).
PONTO FINAL