Um pouco ao jeito de uma «Nota Final»
Ao longo de cerca de 20 anos (desde finais de 1999 o ano da transição) e sob a tutela do Instituto do Oriente, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Politicas e da Universidade de Lisboa propus-me a analisar as dinâmicas sociais em contexto de mudança tomando Macau como referência no seu periodo da pós transição.
Foi este o tema que acabou por dar origem às minhas crónicas endossadas ao Ponto Final, por volta de 2004, como forma de ir registando no tempo as marcas da sua evolução, sempre na expectativa que poderia ser simultaneamente um tema de interesse para um público que as quisesse ler e uma espécie de «observatório» das narrativas que o tempo ia deixando fazer.
Tentei, na medida do possível, abarcar questões políticas, económicas, sociais e culturais, dimensões que são o cerne da dinâmica das actuais sociedades organizadas, relevando e ampliando a contextualização da importância dos macaenses e da sua identidade nesta realidade, quer por opção apologética que assumi e assumo por questões de imperativo pessoal, quer também pela sua importância no foro académico.
Ao longo desses anos assistimos à consolidação do espaço da Região Administrativa e Especial de Macau (vulgo RAEM) em contraponto de uma Macau quinhentista que foi ficando no passado, erguendo-se como uma nova realidade impregnada pela modernidade que caracteriza as novas cidades, melhorando em muitos aspectos a vida das pessoas e simultaneamente, descaracterizando em alguns aspectos as suas características singulares de uma herança «sui generis» alicerçada nos valores multi e pluri étnico-culturais.
Os últimos acontecimentos que vão profilando na RAEM levam-nos a concluir que o período da pós transição programado para se concluir apenas em 2049, acelerou o seu fecho expectável pelos recentes acontecimentos de Hong-Kong com efeitos colaterais em Macau, a ideia subjacente ao período da pós transição assentava num plano gradual e faseado de uma integração absoluta da RAEM no domínio da Republica Popular da China (vulgo RPC) sem convulsões e com a garantia da proteção da cidadania singular da geração que aí permaneceu com essa promessa.
Todos nós sabíamos (ou pelo menos aceitámos) que findo o período da pós transição, Macau passaria (a exemplo de Hong kong em 2047) a ter um alinhamento integrado com a RPC legitimado pela cessação da Lei Básica que regula as Regiões Administrativas Especiais (RAE’s), ou seja, deixaria de haver um compromisso para a manutenção dos legados, essencialmente do ponto de vista jurídico e politico. Ora a possibilidade de antever este período de 50 anos tornava aliciante a análise da dinâmica da mudança social sob o ângulo das “entrelinhas” que se íam tecendo, pelo menos por mais uns bons anos.
A precipitação dos acontecimentos recentes anulou essa possibilidade e impôs uma realidade mais nua e crua, ou seja, antecipou o fecho de um ciclo por todos esperado mas, tornando a realidade da RAEM quase ausente de “nuances” apetecíveis para uma análise mais refinada dos contextos sociais em mudança onde o mais interessante assentava nas dualidades e nas ambiguidades.
Ao retirarem a «matéria-prima» que alimentava o meu gosto pela observação, reflexão e incerteza dos tempos, senti-me um pouco à deriva na procura de conteúdos interessantes, fiquei com aquela sensação de quando nos aparece um «spoiler» (alguém que antecipa o desfecho) e nos conta logo como acaba o filme, retirando o interesse e a capacidade de ir acrescentando narrativas com suspense, mesmo sabendo que o final seria sempre o mesmo.
Com esta singela Nota Final me despeço dos (possíveis e eventuais) leitores do Ponto Final que tiveram alguma paciência para ir acompanhando as minhas palavras soltas ao longo destes últimos anos, com a certeza de que tentei na medida do possível alimentar a «alma» de Macau com os seus aspectos singulares.
Carlos Piteira
Investigador do Instituto do Oriente
Instituto Superior de Ciências Socias e Políticas / Universidade de Lisboa